Baile de quintal
Quando minha mãe estava no ginásio, seu primeiro namorado foi Serginho. O Serginho e o Flávio eram muito amigos, e o Flávio namorava a Lígia. Lígia agora trabalha comigo, a filha da Marina. Lígia disse se lembrar de Marina, só por nome, mas Marina não se lembra nem um pouco de Lígia. Marina me contou que o Serginho era um menino super bonitinho, parecido com o menino propaganda da laranjada na TV. Tinha os cabelos castanhos claros e os olhos verdes, e todas as meninas da escola o achavam bonitinho. Se conheceram nos intervalos das aulas, já que meninos estudavam de manhã e meninas à tarde. E também se viam nos ensaios da fanfarra, que desfilava em todo dia sete de setembro. Também haviam os bailes de quintal, em que os adultos deixavam as crianças fazerem uma festinha no quintal, e os convidados traziam os refrigerantes e e alguma comidinha. Uma vez foram no antigo cinema Gazetinha assistir "Os Dois Mundos de Charlie" com o pessoal do colégio. Sabe-se lá o que acontecia nesse escurinho do cinema.
Marina e Serginho namoraram apenas algumas semanas. Namorico besta de criança, diz ela. Já Lígia namorou Flávio até o começo da faculdade. Ela me disse que Sérgio, já adulto, se casou com a prima do Flávio, e com ela está até hoje. Sérgio teve dois filhos com a prima do Flávio, e acolheu mais quatro crianças, depois que sua irmã morreu e os deixou órfãos. Se Marina tivesse continuado com Sérgio, ela estaria criando meia dúzia de filhos, e eu não teria nascido. Haveria uma Larissa, ou Melissa talvez, mas essa seria mestiça, e teria 5 irmãos. Talvez não haveria uma filha chamada Cinthia, já que eu, Larissa, aos 4 anos, dei esse nome à minha irmã.
Lígia já tem sete netos, e espera um oitavo pra junho. Marina ainda não tem netos e nem está em vias de ter. Essa história de Serginho e Flávio me fascina, me encanta, e me deixa uma sensação ruim também. Já se passaram mais de 30 anos desde o início dela. Serginho hoje já é Serjão e deve estar gordo e careca. Assim como a vida das pessoas nascidas na década de 50 também pode ter se tornado gorda de cansaço, careca de emoção, ou amargada pela decepção. Ao passo que essas experiências inocentes (ou não) vão ficando pra trás, como vagas lembranças, o presente, ah, o presente é um esforço eterno de não deixar a vida desmoronar. Foi legal ver um sorriso no rosto da minha mãe, sorriso sincero que veio de dentro, ao falar dessa história. Assim como foi legal ver o sorriso de Lígia logo cedo no trabalho, e um bom humor e leveza que nunca antes havia reparado nela.
A cada década em sua vida, ocorrem mudanças no mundo, e na sua pessoa. Cada um tem que fazer escolhas, tem que aceitar ou recusar desafios, tem o tanto de sorte que lhe foi designada, e com tudo isso vai ter que escolher quem vai querer ser, ou então se resignar com quem conseguiu ser. Cada década que se passou significou mudanças da vida destes personagens.
Flávio hoje é investigador de polícia, como no Cold Case. O que será que aconteceu com Serginho? Será que ainda é muito amigo do Flávio? Será que a amizade deles continua tão verdadeira quanto antes?? Nem Marina nem Lígia souberam me dizer.
E se as pessoas que se criaram nas décadas de 60 e 70, em que tudo ainda era sólido, hoje correm o risco de ver a vida desmoronar, imagine os jovens da década de 90 e da atual, que já tem a vida tão fragmentada, vazia de valores, de objetivos concretos? Fico feliz e triste ao pensar nisso.
3 Comments:
Nossa, um dos seus melhores. Preciso pensar. Volto depois para falar.
"então se resignar com quem conseguiu ser"...
que horrível isso. acho que fico louca se um dia ter que agir desta forma.
Essas histórias são fascinantes. E esse mundo, como diria uma amiga, é mesmo um bairro. As histórias vão se cruzando por aí, "há encontros. Há colisões. Há cirurgias...", rs. É um tema que sempre que leio ou escrevo me deixa meio estranho...
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