28 de setembro de 2007

Atípico e muito real

Quando se desce a avenida para casa a poucos metros de dois meninos muito pequenos e um jovem adulto extremamente exaltados, que chutam todas as portas de comércio (fechadas), placas de rua, gritando que “!!!O LULA PAGA!!!” e que “!!!É TUDO NOSSO!!!” não dá tempo de olhar para cima e tentar enxergar se há luz na janela do seu quarto. A cada passo, um estrondo. As pequenas pernas dos meninos não combinam com o volume do som que emitem. Mas tudo o que eles fazem, naturalmente, é imitar a figura mais velha, como na brincadeira O CAPITÃO MANDOU. Nessas horas você olha para o lado apenas para constatar que justo hoje há pouquíssimas pessoas na rua voltando para casa. O medo faz as pernas correrem mais rápido, mas num passo que não faça parecer que você está com medo.
Quando você já está na frente de casa, a curiosidade faz diminuir o passo, quase parar, para observar estas perturbadas criaturas. Você tenta compreender, mas não chega muito perto. Pensa mais uma vez que não tem vocação para assistente social, apenas curiosidade. Eles resolvem parar ao lado da pizzaria movimentada, não sei porque.
Quando você chega em casa, inteira mas não recomposta, constata que da porta do seu quarto não sai nenhuma luz, pois a irmã dorme profundamente. Olha pela fresta da janela lateral da sala, e se surpreende ao perceber que eles ainda estão lá, agora acompanhados por uma nova personagem, que de longe se sabe que é uma moça, completando agora esta perturbada família. Os meninos se aquietam, e o jovem adulto agora parece um pai, estendendo o agasalho para o filho vestir. Saturada, você dá de ombros e vai preparar um leite quente com açúcar queimado, bebida que prepara toda vez que precisa se recompor de alguma coisa.
Apesar da hora, não sente sono, não sente cansaço, não sente nada além de confusão.
Dois minutos são o suficiente pensar em muita coisa, o pensamento mudar de rumo e o pessimismo se instalar. “Sorôco, sua mãe, sua filha” passam correndo pela minha cabeça. Há tantos por aí que durante o dia você não vê, mas que não fazem parte do mundo hegemônico, não se encaixam na forma como a sociedade impõe que você deve viver. Pessoas pressionadas constantemente, que mal conseguem sobreviver, acuadas pelo poder de todos os lados. Quando você é desajustado, imagino que baixe a cabeça até para um pombo passar. Assim, em algum momento, deixará a ira extravasar.
Dois minutos são suficientes para você parar de sonhar com uma residência térrea, com ampla área verde e sem muros. Nem mesmo uma casa de vila. Suficiente para você se juntar àquele enorme grupo dos que escolhem torres muradas para chamar de casa. Por um momento você está junto daqueles para quem olhava com desprezo e superioridade. Espero que este momento não seja longo demais para perder as esperanças.

6 Comments:

At 11:59 AM, Blogger Fernanda Tsuji said...

Eu tinha passado aqui só para te avisar que eu esqueci de te pagar da última sexta gourmet.
Mas aí li o texto e fiquei bem tocada...gostei de tudo. Do leite com açucar queimado e do abaixar a cabeço para os pombos. Ótimo texto!

 
At 12:01 PM, Blogger Fernanda Tsuji said...

eu tb fico chateada. Igual quando você diz que eu só vejo loucos na rua....na verdade eu vejo essas situações, sabe? De dar uma tristeza, de perder a fé...

 
At 2:34 AM, Blogger euvoltologo said...

quem era soroco mesmo?

 
At 3:36 PM, Blogger Larissa said...

Fe, na sexta-feira a gente acerta. no problemo
Priscila, Soroco é uma personagem de um conto do Guimarães Rosa, no livro (dos mais legais) Primeiras Estórias.

 
At 6:20 PM, Anonymous Anônimo said...

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At 7:50 PM, Blogger Paulo Henrique Galves da Silva said...

Puxa vida, minha amiga. É isso mesmo...

 

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